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Língua Portuguesa – A condução da voz narrativa.

Olá! Esta aula de Língua Portuguesa é destinada a educandos da 7ª Série da Eaja.

Temática – Língua Portuguesa – A condução da voz narrativa. Disponível em: <https://www.publicdomainpictures.net/pt/view-image.php?image=248482&picture=restaurante-a-beira-mar>. Acesso em 14 de Outubro de 2021.

A aula de hoje abordará o foco narrativo, a voz enunciativa e seu poder de condução pela história. A construção da primeira ou terceira pessoa para conduzir uma narrativa requer muita cautela, pois o foco é também enfoque. Se o narrador participa ou não dos fatos também é motivo para crédito real ou ficcional de uma história. Afinal a história de fato ocorreu ou apenas é puro fruto da ficção?


Assista a videoaula abaixo, com a temática – Língua Portuguesa – A condução da voz narrativa.

LÍNGUA PORTUGUESA | 7ª SÉRIE | Eaja | PROF.ª: REGINA

 A condução da voz narrativa

Hoje, iremos estudar os elementos que compõem uma narrativa e o papel do narrador, sua aproximação dos fatos e claro seu olhar acerca dos acontecimentos. A estrutura narrativa no Brasil se consagra com o conto brasileiro, literatura fácil, com poucos personagens, enredo curto, noções de tempo e espaço bem resolvidos, deixando o leitor a vontade para fazer digressões ou mesmo avanços sobre o texto.

Para o conto brasileiro a figura de maior destaque é a voz enunciativa, é a figura imponente ou mesmo sutil do narrador, ora participando da história como personagem, ora distante fazendo sua observação atenta e minuciosa do enredo. Mas ressaltamos que o narrador em primeira ou em terceira pessoa remete a escolhas importantes sobre o ponto de vista narrativo, algo que a literatura vê como foco narrativo, o ângulo em que a história será relatada.

Para melhor ilustrar a aula de hoje, vamos conhecer o renomado conto: O menino e o velho de Lygia Fagundes Telles, com uma abordagem contemporânea, o distinto narrador personagem marca a narrativa com tom distante a estranha história de amizade entre um menino e um velho, marcada pelo espaço de um restaurante a beira mar, e de forma detalhada a característica física de cada personagem: o menino e o velho. O narrador faz o leitor pensar em inúmeras possibilidades sobre a relação entre o menino e o velho, parentesco ou amizade? Para conhecer mais, vamos ler a história?

O menino e o velho – Conto de Lygia Fagundes Telles

Quando entrei no pequeno restaurante da praia os dois já estavam sentados, o velho e o menino. Manhã de um azul flamante. Fiquei olhando o mar que não via há algum tempo e era o mesmo mar de antes, um mar que se repetia e era irrepetível. Misterioso e sem mistério nas ondas estourando naquelas espumas flutuantes (bom-dia, Castro Alves!) tão efêmeras e eternas, nascendo e morrendo ali na areia. O garçom, um simpático alemão corado, me reconheceu logo. Franz? eu perguntei e ele fez uma continência, baixou a bandeja e deixou na minha frente o copo de chope. Pedi um sanduíche. Pão preto? ele lembrou e foi em seguida até a mesa do velho que pediu outra garrafa de água de Vichy.

Fixei o olhar na mesa ocupada pelos dois, agora o velho dizia alguma coisa que fez o menino rir, um avô com o neto. E não era um avô com o neto, tão nítidas as tais diferenças de classe no contraste entre o homem vestido com simplicidade mas num estilo rebuscado e o menino encardido, um moleque de alguma escola pobre, a mochila de livros toda esbagaçada no espaldar da cadeira. Deixei baixar a espuma do chope mas não olhava o copo, com o olhar suplente (sem direção e direcionado) olhava o menino que mostrava ao velho as pontas dos dedos sujas de tinta, treze, catorze anos? O velho espigado alisou a cabeleira branca em desordem (o vento) e mergulhou a ponta do guardanapo de papel no copo d’água. Passou o guardanapo para o menino que limpou impaciente as pontas dos dedos e logo desistiu da limpeza porque o suntuoso sorvete coroado de creme e pedaços de frutas cristalizadas já estava derretendo na taça. Mergulhou a colher no sorvete. A boca pequena tinha o lábio superior curto deixando aparecer os dois dentes da frente mais salientes do que os outros e com isso a expressão adquiria uma graça meio zombeteira. Os olhos oblíquos sorriam acompanhando a boca mas o anguloso rostinho guardava a palidez da fome. O velho apertava os olhos para ver melhor e seu olhar era demorado enquanto ia acendendo o cachimbo com gestos vagarosos, compondo todo um ritual de elegância. Deixou o cachimbo no canto da boca e consertou o colarinho da camisa branca que aparecia sob o decote do suéter verde-claro, devia estar sentindo calor mas não tirou o suéter, apenas desabotoou o colarinho. Na aparência, tudo normal: ainda com os resíduos da antiga beleza o avô foi buscar o neto na saída da escola e agora faziam um lanche, gazeteavam? Mas o avô não era o avô. Achei-o parecido com o artista inglês que vi num filme, um velho assim esguio e bem cuidado, fumando o seu cachimbo. Não era um filme de terror mas o cenário noturno tinha qualquer coisa de sinistro com seu castelo descabelado. A lareira acesa. As tapeçarias. E a longa escada com os retratos dos antepassados subindo (ou descendo) aqueles degraus que rangiam sob o gasto tapete vermelho.

Cortei pelo meio o sanduíche grande demais e polvilhei o pão com sal. Não estava olhando mas percebia que os dois agora conversavam em voz baixa, a taça de sorvete esvaziada, o cachimbo apagado e a voz apagada do velho no mesmo tom caviloso dos carunchos cavando (roque-roque) as suas galerias. Acabei de esvaziar o copo e chamei o Franz. Quando passei pela mesa os dois ainda conversavam em voz baixa – foi impressão minha ou o velho evitou o meu olhar? O menino do labiozinho curto (as pontas dos dedos ainda sujas de tinta) olhou-me com essa vaga curiosidade que têm as crianças diante dos adultos, esboçou um sorriso e concentrou-se de novo no velho. O garçom alemão acompanhou-me afável até a porta, o restaurante ainda estava vazio. Quase me lembrei agora, eu disse. Do nome do artista, esse senhor é muito parecido com o artista de um filme que vi na televisão. Franz sacudiu a cabeça com ar grave: Homem muito bom! Cheguei a dizer que não gostava dele ou só pensei em dizer? Atravessei a avenida e fui ao calçadão para ficar junto do mar.

Voltei ao restaurante com um amigo (duas ou três semanas depois) e na mesma mesa, o velho e o menino. Entardecia. Ao cruzar com ambos, bastou um rápido olhar para ver a transformação do menino com sua nova roupa e novo corte de cabelo. Comia com voracidade (as mãos limpas) um prato de batatas fritas. E o velho com sua cara atenta e terna, o cachimbo, a garrafa de água e um prato de massa ainda intocado. Vestia um blazer preto e malha de seda branca, gola alta.

Puxei a cadeira para assim ficar de costas para os dois, entretida com a conversa sobre cinema, o meu amigo era cineasta. Quando saímos a mesa já estava desocupada. Vi a nova mochila (lona verde-garrafa, alças de couro) dependurada na cadeira. Ele esqueceu, eu disse e apontei a mochila para o Franz que passou por mim afobado, o restaurante encheu de repente. Na porta, enquanto me despedia do meu amigo, vi o menino chegar correndo para pegar a mochila. Reconheceu-me e justificou-se (os olhos oblíquos riam mais do que a boca), Droga! Acho que não esqueço a cabeça porque está grudada.

Pressenti o velho esperando um pouco adiante no meio da calçada e tomei a direção oposta. O mar e o céu formavam agora uma única mancha azul-escuro na luz turva que ia dissolvendo os contornos. Quase noite. Fui andando e pensando no filme inglês com os grandes candelabros e um certo palor vindo das telas dos retratos ao longo da escadaria. Na cabeceira da mesa, o velho de chambre de cetim escuro com o perfil esfumaçado. Nítido, o menino e sua metamorfose mas persistindo a palidez. E a graça do olhar que ria com o labiozinho curto.

No fim do ano, ao passar pelo pequeno restaurante resolvi entrar mas antes olhei através da janela, não queria encontrar o velho e o menino, não me apetecia vê-los, era isso, questão de apetite. A mesa estava com um casal de jovens. Entrei e Franz veio todo contente, estranhou a minha ausência (sempre estranhava) e indicou-me a única mesa desocupada. Hora do almoço. Colocou na minha frente um copo de chope, o cardápio aberto e de repente fechou-se sua cara num sobressalto. Inclinou-se, a voz quase sussurrante, os olhos arregalados. Ficou passando e repassando o guardanapo no mármore limpo da mesa, A senhora se lembra? Aquele senhor com o menino que ficava ali adiante, disse e indicou com a cabeça a mesa agora ocupada pelos jovens. Ich! foi uma coisa horrível! Tão horrível, aquele menininho, lembra? Pois ele enforcou o pobre do velho com uma cordinha de náilon, roubou o que pôde e deu no pé! Um homem tão bom! Foi encontrado pelo motorista na segunda-feira e o crime foi no sábado. Estava nu, o corpo todo judiado e a cordinha no pescoço, a senhora não viu no jornal?! Ele morava num apartamento aqui perto, a polícia veio perguntar mas o que a gente sabe? A gente não sabe de nada! O pior é que não vão pegar o garoto, ich! Ele é igual a esses bichinhos que a gente vê na areia e que logo afundam e ninguém encontra mais. Nem com escavadeira a gente não encontra não. Já vou, já vou! ele avisou em voz alta, acenando com o guardanapo para a mesa perto da porta e que chamava fazendo tilintar os talheres. Ninguém mais tem paciência, já vou! …

Olhei para fora. Enquadrado pela janela, o mar pesado, cor de chumbo, rugia rancoroso. Fui examinando o cardápio, não, nem peixe nem carne. Uma salada. Fiquei olhando a espuma branca do chope ir baixando no copo.

A linguagem utilizada pela autora, Lygia Fagundes Telles, é simples e objetiva, as frases com letras iniciais maiúsculas dentro de outras frases mostram o fluxo das ideias e como se saíssem diretamente dos pensamentos e lembranças da narradora. A composição das personagens é simples, são apenas quatro: o narrador, que na verdade é uma narradora, o menino, o velho e o garçom. Perfazem tipos urbanos de pouca notoriedade, porém o maior destaque dá-se a figuração do mar, enquanto maior espaço ocupado pela narrativa. A noção temporal é vaga, como a expressão: “No fim do ano…” sem data o marca temporal.

A narradora retornou àquele mesmo restaurante nas próximas duas ou três semanas e cruzou com os dois na mesma mesa. Agora o menino trajava roupas boas, tinha o cabelo bem cortado e uma mochila nova. E o senhor, como sempre, bem vestido. E é exatamente a condução da narradora que nos leva ao conhecimento e a aproximação entre os personagens, e mais adiante ao desfecho trágico como uma notícia da página policial. Desfechos trágicos, parecidos com o do conto “O menino e o velho”, entrelaçam a nossa vida todos os dias e nos chegam por meio de variadas artes, aqui destacamos a literatura, e a voz de uma narradora, frequentadora de um restaurante a beira mar, segue de maneira sutil a narrativa como quem observa e não quer nada, finaliza a história com um diálogo revelador, o relato do assassinato do velho.

O conto O Menino e o Velho é surpreendente e nos deixa com algumas dúvidas. Ao descrever já no início do conto que o garoto será o responsável pela morte do senhor, continuamos a leitura na expectativa de que tudo aquilo será explicado – afinal, um garoto matar um idoso sem mais nem menos não é algo comum, neste sentido, entre as principais características do conto O Menino e o Velho de Lygia Fagundes Telles podemos destacar: a linguagem objetiva e simples, frases que aceleram o fluxo narrativo, expressões de lembrança e pensamento vindas da narradora personagem, associação de fatos encontrados no dia a dia e a simbologia dos espaços. O Conto ‘O Menino e o Velho’ é um dos mais conhecidos da obra ‘Invenção e Memória’, de Lygia Fagundes Telles é um retrato autêntico de um quadro policial cinematográfico.

Atividades

Questão 01 – O conto: “O menino e o Velho” de Lygia Fagundes Telles faz um retrato de uma cena altamente criminosa, no entanto esta cena é mera ficção. Tomando como princípio a cena criminosa, faça uma cobertura jornalística, invente a data, a hora, o lugar: como rua, bairro, edifício, apartamento. Enfim, agora a ficção e a invenção é sua, lembre-se você um jornalista!

Questão 02 – Agora vamos mudar um pouco o foco narrativo, que tal comentar esta história de amizade entre o menino e o velho com seus familiares? Observe que para narrar novamente a história você usou a terceira pessoa, tanto para pronomes como verbos, observe também que o trabalho narrativo fazemos de maneira involuntária quando queremos relatar ou mesmo falar uma história que não é nossa.


Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento:(EAJALP0715) Identificar os elementos da narrativa: espaço, tempo, personagens, conflito, clímax, foco narrativo, desfecho.
(EAJALP0638) Redigir contos em primeira e em terceira pessoas
Referências:Lygia Fagundes Telles recita “O menino e o velho”. Site “Conto brasileiro”. Disponível em:https://contobrasileiro.com.br/o-menino-e-o-velho-conto-de-lygia-fagundes-telles/acessado em 01/10/2021