Esta atividade de Língua Portuguesa tem como base o DC/GO – Ampliado e está destinada a estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental.

A fala popular na literatura
A fala popular corresponde às formas de expressão linguística utilizadas no cotidiano por diferentes grupos sociais, variando conforme aspectos regionais, culturais, históricos e de classe. Essas variações incluem o vocabulário, a pronúncia, a gramática, os provérbios, as gírias e os modos próprios de cada comunidade.
Na literatura, o uso da fala popular cumpre funções importantes, como promover a aproximação entre os personagens de sua realidade social, atribuir autenticidade à narrativa, valorizar a cultura popular e regional, além de promover uma crítica social ou um humor específico. Com isso, o leitor pode compreender melhor os personagens e o contexto cultural da obra, perceber a intencionalidade do autor em valorizar ou criticar determinadas culturas ou modos de vida e desenvolver maior sensibilidade para as variedades linguísticas.
A fala popular na literatura pode aparecer de várias maneiras: nos diálogos entre personagens, na narração, quando o narrador também adota essa linguagem, em poemas e canções que buscam refletir o universo popular.
Alguns indícios importantes
- Uso de expressões regionais: “oxente”, “uai”, “bah” etc.;
- Gírias ou jargões: “mó barato”, “véi”, “parada”;
- Marcas de oralidade: repetições, interjeições, construções sintáticas características do falar espontâneo;
- Alterações fonéticas e morfológicas: “nóis vai”, “pru mode de”, “cês”, “procê”.
Autores como Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Jorge Amado e Rachel de Queiroz são exemplos de escritores que exploraram amplamente a fala popular para construir personagens verossímeis e para ambientar suas obras em determinados espaços culturais brasileiros.
Veja um trecho da obra “O quinze”, de Rachel de Queiroz, que coloca em evidência a fala do povo cearense na literatura brasileira.
Enconstado a uma jurema seca, defronte ao juazeiro que a foice dos cabras ia pouco a pouco mutilando, Vicente dirigia a distribuição de rama verde ao gado. Reses magras, com grandes ossos agudos furando o couro das ancas, devoravam confiadamente os rebentões que a ponta dos terçados espalhava pelo chão.
Era raro e alarmante, em março, ainda se tratar de gado. Vicente pensava sombriamente no que seria de tanta rês, se de fato não viesse o inverno. A rama já não dava nem para um mês.
Imaginara retirar uma porção de gado para a serra. Mas, sabia lá? Na serra, também, o recurso falta… Também o pasto seca… Também a água dos riachos afina, afina, até se transformar num fio gotejante e transparente. Além disso, a viagem sempasto, sem bebida certa, havia de ser um horror, morreria tudo.
Uma vaca que se afastava chamou a atenção do rapaz, que deu um grito:
— Eh! Menino, olha a Jandaia! Tange para cá!
E chamando o vaqueiro:
— Você viu, compadre João, como a Jandaia tem carrapato? Até no focinho!
O João Marreca olhou para o animal que todo se pontilhava de verrugas pretas, encaroçando-lhe o úbere, as pernas, o corpo inteiro:
— Tem umas ainda pior… Carece é carrapaticida muito… E as reses assim fracas…
Vicente lastimou-se:
— Inda por cima do verãozão, diabo de tanto carrapato… Dá vontade é de deixar morrer logo!
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 31-32.
Veja como o texto traduz uma realidade do interior nordestino, em que a forma e o conteúdo se relacionam diretamente na composição da narrativa. Apesar disso, o uso da fala popular na literatura muitas vezes é alvo de preconceito social, relacionado à ideia equivocada de que existem formas “certas” e “erradas” de falar. Esse preconceito se manifesta quando a linguagem popular é vista como inferior, incorreta ou inadequada, em comparação à norma-padrão da língua. No entanto, cada variedade linguística possui valor e legitimidade, pois cumpre funções sociais importantes e expressa identidades culturais diversas.
Na escrita literária, quando um autor opta por empregar a fala popular, ele pode enfrentar críticas que desvalorizam essa escolha, sob o argumento de que ela “empobrece” a linguagem ou “afasta” a literatura do padrão culto. Na verdade, essa prática amplia a representatividade na literatura, conferindo voz a grupos historicamente marginalizados e rompendo com a visão elitista da língua. Assim, combater esse preconceito significa reconhecer que a diversidade linguística é uma riqueza cultural e que a literatura deve refletir a pluralidade das formas de expressão do povo.
Assista à videoaula do professor Marlon Santos com essa temática.
Responda às questões a seguir.
Leia o fragmento do romance “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, para responder às questões.
Capítulo 4
Resolvi estabelecer-me aqui na minha terra, município de Viçosa, Alagoas, e logo planeei adquirir a propriedade S. Bernardo, onde trabalhei, no eito, com salário de cinco tostões.
Meu antigo patrão, Salustiano Padilha, que tinha levado uma vida de economias indecentes para fazer o filho doutor, acabara morrendo do estômago e de fome sem ver na família o título que ambicionava. Como quem não quer nada, procurei avistar-me com Padilha moço (Luís). Encontrei-o no bilhar, jogando bacará, completamente bêbedo. Está claro que o jogo é uma profissão, embora censurável, mas o homem que bebe jogando não tem juízo. Aperuei meia hora e percebi que o rapaz era pexote e estava sendo roubado descaradamente.
Travei amizade com ele e em dois meses emprestei-lhe dois contos de réis, que ele sapecou depressa na orelha da sota e em folias de bacalhau e aguardente, com fêmeas ratuínas, no Pão-sem-Miolo. Vi essas maluqueiras bastante satisfeito, e quando um dia, de novo quebrado, ele me veio convidar para um S. João na fazenda, afrouxei mais quinhentos mil-réis. Ao ver a letra, fingi desprendimento:
— Para que isso? Entre nós… Formalidades.
Mas guardei o papel.
Achei a propriedade em cacos: mato, lama e potó como os diabos. A casa-grande tinha paredes caídas, e os caminhos estavam quase intransitáveis. Mas que terra excelente!
À noite, enquanto a negrada sambava, num forrobodó empestado, levantando poeira na sala, e a música de zabumba e pífanos tocava o hino nacional, Padilha andava com um lote de caboclas fazendo voltas em redor de um tacho de canjica, no pátio que os muçambês invadiam. Tirei-o desse interessante divertimento:
— Por que é que você não cultiva S. Bernardo?
— Como? perguntou Padilha esfregando os olhos por causa da fumaça e encostando-se a um mamoeiro que murchava ao calor do fogo.
— Tratores, arados, uma agricultura decente. Você nunca pensou? Quanto julga que isto rende, sendo bem aproveitado?
Luís Padilha revelou com a mão e com o beiço ignorância lastimável num proprietário e, sem ligar importância ao assunto, voltou às rodas interrompidas e às caboclas. Mas de madrugada, numa carraspana terrível, importunou-me gemendo palavras desconexas. A cada solavanco do carro de bois que nos conduzia à cidade, levantava a cabeça:
— Tudo rico, seu Paulo. Vai ser uma desgraceira.
Agarrava-se a um fueiro do carro e punha-se a vomitar. Depois pegava no sono para acordar agoniado e arrotando:
— Arados, não há nada como os arados. Apareceu-me no dia seguinte, ainda com vestígios do pifão:
— Seu Paulo Honório, venho consultá-lo. O senhor, homem prático…
— Às ordens.
— Creio que já lhe disse que resolvi cultivar a fazenda.
— Mais ou menos.
— Resolvi. Aquilo como está não convém. Produz bastante, mas poderá produzir muito mais. Com arados… O senhor não acha? Tenho pensado numa plantação de mandioca e numa fábrica de farinha, moderna. Que diz?
Burrice. Estragar terra tão fértil plantando mandioca!
— É bom.
E não prestei mais atenção ao caso, deixei que ele se entusiasmasse só e fosse discutir o seu projeto no Gurganema, à noite, ao som do violão. Realmente transformou-se. Nas pedras do Paraíba, com uma garrafa de cachaça, aperreava os companheiros de farra — declamando sementes e adubos químicos. Tornou-se regularmente vaidoso, desejava aprender agronomia, e em pouco tempo a cidade inteira conheceu as plantações, as máquinas, a fábrica de farinha.
— Como vai a lavoura, Padilha?
A princípio respondia, depois compreendeu o ridículo e deu para se esquivar, magoado com as perfídias dos amigos.
— Selvagens! rosnava aguentando as batotas no bacará. Vamos para diante.
E a gente ficava sem saber se ele se referia aos parceiros que o pelavam ou aos camaradas que mangavam dele. Procurou-me e desabafou:
— Selvagens! Um empreendimento de vulto, o senhor está vendo, e esses burros vêm com picuinha. Aqui ninguém entende nada, seu Paulo, isto é um lugar infeliz. Aqui só se cogita de safadeza e pulhice.
Cheio de amargura, abalada a decisão dos primeiros dias, confessou-me que tinha tentado contrair um empréstimo com o Pereira.
— Cavalo! Fiz uma exposição minuciosa, demonstrei cabalmente que o negócio é magnífico. Não acreditou, disse que estava no pau da arara. E eu calculei que talvez a transação lhe interessasse. Quer desembolsar aí uns vinte contos?
Examinei sorrindo aquele bichinho amarelo, de beiços delgados e dentes podres.
— Ó Padilha, gracejei, você já fechou cigarros?
Padilha comprava cigarros feitos.
— É mais cômodo, concordei, mas é mais caro. Pois, Padilha, se você tivesse fechado cigarros, sabia como é difícil enrolar um milheiro deles. Imagine agora que dá mais trabalho ganhar dez tostões que fechar um cigarro. E um conto de réis tem mil notas de dez tostões. Vinte contos de réis são vinte mil notas de dez tostões. Parece que você ignora isto. Fala em vinte contos assim com essa carinha, como se dinheiro fosse papel sujo. Dinheiro é dinheiro.
Padilha baixou a cabeça e resmungou amuado que sabia contar. Saiu, voltou outras vezes, insistindo.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 21-25.
QUESTÃO 1
No texto, o uso de expressões como “sapecou depressa na orelha da sota” e “muié ratuína” são marcas de
(A) linguagem formal.
(B) fala popular e regional.
(C) linguagem técnica.
(D) fala do jargão jurídico.
QUESTÃO 2
A fala popular utilizada no texto contribui para
(A) desvalorizar os personagens e distanciar o leitor.
(B) tornar a narrativa mais superficial e caricata.
(C) aproximar a narrativa do contexto dos personagens.
(D) ocultar as intenções do narrador sobre o desfecho.
QUESTÃO 3
Considerando o contexto, o narrador expressa preconceito ao:
(A) incentivar Padilha a estudar agronomia.
(B) apoiar Padilha na transformação da fazenda.
(C) difamar Padilha por seu comportamento.
(D) considerar a propriedade uma terra excelente.
QUESTÃO 4
Quais marcas de fala popular podem ser identificadas no texto? Apresente dois exemplos e explique seu efeito na narrativa.
QUESTÃO 5
De que maneira o uso da fala popular do narrador personagem Paulo Honório contribui para a caracterização do personagem Padilha?
QUESTÃO 6
Por que o narrador ironiza o entusiasmo repentino de Padilha com a agricultura e os arados?
Autoria: | Marlon Santos |
Formação: | Letras – Português |
Componente curricular: | Língua Portuguesa |
Conteúdo(s)/Objeto(s) de conhecimento | Procedimentos de leitura; Variação linguística. |
Habilidade estruturante: | (EF69LP55) Reconhecer as variedades da língua falada, o conceito de norma padrão e o de preconceito linguístico. |
Descritores: | D1 – Localizar informações explícitas em um texto. D3 – Inferir o sentido de uma palavra ou expressão. D4 – Inferir uma informação implícita em um texto. |
Referências: | Documento Curricular para Goiás (DC-GO). Goiânia/GO: CONSED/ UNDIME Goiás, 2018. Disponível em: <https://cee.go.gov.br> Acesso em: 03, fev. 2025 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 31-32. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 21-25. |